Em 1961, a Enovid era lançada no mercado dos Estados Unidos e do Reino Unido, chegando ao Brasil em 1963. As pesquisas que proporcionaram o desenvolvimento da pílula, um dos métodos contraceptivos mais populares em todo o mundo, envolveram o estudo da sintetização de progesterona e estrogênio, substâncias capazes de inibir a ovulação. Enquanto a trajetória do desenvolvimento científico da droga reuniu vários nomes masculinos (Russel Marker, Gregory Pincus, Carl Djerassi - considerado "pai da pílula"), a viabilização política e financeira da implementação da pílula conecta-se ao de duas mulheres: Margaret Sanger (1879-1966) e Katherine McCormick (1875-1967), respectivamente.
A bióloga McCormick [foto à direita], notável ativista pelo sufrágio das mulheres, segunda mulher a frequentar o MIT (Massachussets Institute of Technology), foi responsável por conferir viabilidade financeira à comercialização da pílula anticoncepcional, tendo investido milhões no desenvolvimento da pesquisa após se tornar herdeira de vasta fortuna com a morte de seu marido. McCormick foi ainda importante na luta por melhores condições de habitação para mulheres em universidades nos Estados Unidos. Margaret Sanger, por seu lado, na contramão de um Estado que em 1873 estabelecera a Comstock Law, determinando a supressão do comércio e circulação de “literatura obscena e artigos de uso imoral”, dentre os quais incluíam-se contraceptivos, abortivos e quaisquer informações sobre estes, tornou-se histórica no ativismo pelo controle de natalidade nos EUA e no mundo.
A alcunha de feminista conferida a Sanger, contudo, sob meu ponto de vista, pode - e deve - ser profundamente questionada. Margaret Sanger estava associada amplamente ao movimento eugenista1 de sua época, alinhada à vertente da eugenia negativa, que propõe o 'melhoramento' da raça humana através da eliminação, ou melhor, da prevenção do nascimento de seres humanos tidos com "incapazes" ("unfit"). A questão de quê característica leva à atribuição de “incapacidade”, “impropriedade” ou “inadequação” aqui é central - bem como quem faz essa análise.
Na avaliação de Sanger: "controle de natalidade, frequentemente denunciado como uma violação da lei natural, não é nada mais do que a facilitação do processo de exterminação dos inapropriados (“unfit"), de prevenção do nascimento dos defeituosos, ou dos que se tornarão defeituosos"2. A 'sutileza' da retórica expressa no uso do termo "incapaz" e "impróprio" ("unfit") para indicar aqueles(as) que não deveriam nascer está em não deixar explícito que dentre os grupos tidos como incapazes encontravam-se tanto aqueles(as) que apresentassem algum tipo de deficiência física ou mental ou quadros de doenças crônicas e hereditárias, como também "certos grupos de imigrantes" e a comunidade negra. Isto é, anotavam-se como características a serem filtradas traços genéticos, biológicos e sociais, de tal modo que grupos étnicos e econômico-sociais estavam associados a debilidades físicas e morais que deveriam ser eliminadas.
Segundo Sanger, “o maior dos pecados é trazer ao mundo crianças que possuam doenças de seus pais, que praticamente não têm chance de se tornarem um ser humano — delinquentes, prisioneiros, todo o tipo de coisas simplesmente marcadas quando elas nascem.” Em seu capítulo IV de O Eixo da Civilização ("The Pivot of Civilization"): "(...)o sempre-crescente problema da debilidade intelectual (feeble-mindedness), este parente fértil da degenerescência, da criminalidade e do pauperismo. Embora a porcentagem de imbecis e idiotas (half-witted) possa parecer pequena em comparação ao número de membros normais de uma comunidade, deve ser sempre enfatizado que a debilidade intelectual não é uma expressão isolada da civilização moderna. Suas raízes entranham-se profundamente no tecido social. Estudos recentes indicam que insanidade, epilepsia, criminalidade, prostituição, pauperismo e deficiência mental estão organicamente entrelaçados e que as classes menos inteligentes e extensamente degeneradas de toda comunidade são as mais férteis"3.
Mais informações sobre a vida e a militância de Margaret Sanger podem ser encontradas em abundância na internet e na literatura, dada sua expressividade e a importância para a história dos direitos reprodutivos e das mulheres de forma geral. Reforço a importância de Margaret Sanger não ser considerada uma feminista. É essencial aproveitar este espaço para dizer e enfatizar que o Feminismo não pode se associar a nenhuma forma de opressão, e que a liberdade, independência e integridade da mulher não podem ser conquistadas às custas de outras discriminações, nem podem ser alcançadas à revelia delas. O Feminismo precisa trilhar o rumo de um movimento, de uma filosofia capaz de abraçar lutas que sustentem uma sociedade mais justa, mais pacífica, mais respeitadora, mais desacelerada, mais sustentável. Aqui, não se trata de responsabilizar as mulheres por todas as lutas do mundo (principalmente porque o feminismo não é uma luta de mulheres, é uma luta coletiva), de entregar a elas (a nós) todas as atribuições heróicas de uma missão "hercúlea", trata-se de o Feminismo ter a clareza de perceber o seu papel e o seu potencial diante de uma sociedade que se transforma, que se revoluciona de dentro para fora, que se rebela para desnudar as incontáveis violações e violências sofridas e silenciadas diariamente, que se renova em paradigmas incríveis de ressignificação da própria vida - e aqui vale a pena nomear não só o movimento de uma Sociologia mais próxima do social, mas ainda as revoluções filosóficas trazidas à tona pela Física Quântica e pela Teoria da Relatividade.
Resta que, com o anticoncepcional no mercado, as mulheres ganharam nova autonomia. No Brasil, segundo estudo de 2006 de Luciane Tavares, com dados de 1996, a esterilização feminina e a pílula anticoncepcional totalizam 80% dos métodos contraceptivos adotados pelas mulheres. Este dado reforça, com quase uma década de distância, os dados obtidos por Elza Berquó em 1988, quando avaliou que a esterilização representava 44,4% dos métodos contraceptivos, seguido de perto pela pílula, com 41% das escolhas de contracepção, e o próximo método mais expressivo, com percentual 6,5 do total, era representado pela "abstenção periódica", a famosa 'tabelinha'. A transposição desses percentuais para a realidade atual - transposição que julgo viável uma vez que toda tabela que encontrei indica invariavelmente a esterilização em primeiro lugar e a pílula em segundo - nos dará um universo enorme de mulheres que se valem da pílula anticoncepcional como método de contracepção, tendo que, segundo a ONU, 79% das mulheres brasileiras utilizavam algum método contraceptivo em 2015.
A popularidade da pílula é impulsionada por dois fatores chave: baixo custo e acesso facilitado nas farmácias. Apesar de o remédio ser tarja vermelha, na prática não precisa de prescrição: chega e pede. Segundo estudo de Tavares, "aproximadamente 90% das usuárias da pílula haviam-na comprado em farmácias, sem orientação médica e desprezando critérios de inocuidade". Mas se a pílula é uma forte aliada da mulher em vários aspectos, é também vilã.
Tem aumentado, recentemente, a repercussão e a disseminação de informações sobre casos de trombose associada ao uso de pílulas anticoncepcionais. A trombose é caracterizada por uma obstrução do fluxo sanguíneo em uma ou mais veias do corpo devido à formação de um coágulo, um trombo. Sua associação ao uso de anticoncepcionais se dá pois a administração dos hormônios (progesterona e estrogênio) pode causar um desequilíbrio entre os agentes coagulantes e anticoagulantes do sangue; e, principalmente para mulheres com histórico familiar de trombose e para mulheres fumantes, o risco disso acontecer é maior. Mas você, mulher que se previne com anticoncepcional, estava sabendo disso?
Comunidades e mais comunidades de mulheres têm se unido em torno do tema. A missão principal desses grupos é disseminar a informação de que o uso de anticoncepcionais (aliado a outros fatores) pode desencadear uma trombose; e também pressionar a comunidade médica para que esclareça e oriente as pacientes que fazem uso da droga sobre os riscos que estão envolvidos em sua utilização, e as submeta a exames prévios. Se começar a utilizar pílula hormonal para realizar controle de natalidade está relacionado à facilidade de acesso ao medicamento - facilidade esta que não é nenhum acaso -, é imprescindível que informações sobre as características de seu uso sejam igualmente disseminadas e que as mulheres sejam constantemente observadas e avaliadas por suas(seus) ginecologistas.
A popularização do remédio tornou-se tão ampla que seus riscos e efeitos colaterais têm sido largamente negligenciados. Soma-se a isso a falta de esclarecimento à mulher por profissionais médicos(as) sobre outros métodos possíveis, que possivelmente se adequem melhor ao seu perfil. De fato, de minha experiência, aos 26 anos e usuária de anticoncepcional desde os 15, nunca fui a uma consulta sequer em que me fossem expostos outros métodos contraceptivos possíveis - à exceção da camisinha. Entretanto, as duas perguntas padrão que sempre me fizeram na entrada do consultório são: quantos anos você tem e o que você faz para prevenir gravidez? Surpreende ainda que, passando por quatro tipos diferentes de anticoncepcionais, alternando de um efeito colateral a outro, não apenas nunca fui submetida a alguma avaliação mais aprofundada para levantar a possibilidade de um efeito colateral mais sério, como o risco de trombose, mas sequer fui informada que esse risco existia. Foi necessário descobrir ao acaso o episódio de uma colega que sofreu embolia pulmonar, estranhar quando ela sinalizou que o uso do anticoncepcional havia sido uma das causas e, ao pesquisar, encontrar uma realidade vasta de mulheres que sofreram acometimentos semelhantes, e sobre as quais eu nunca havia ouvido falar, muito embora use o medicamento há mais de uma década. E a moça que sofreu embolia pulmonar, quando ouviu falar do risco? Na cama do hospital.
A negligência com um efeito colateral desta dimensão é inaceitável, além de inacreditável. Um dos efeitos colaterais que barraram a comercialização da pílula masculina (não é curioso já termos chegado a Marte e ainda não termos pílulas masculinas de controle de natalidade?), tido como um “efeito colateral inaceitável”, foi a queda de libido. Veja que intrigante, se um dos efeitos colaterais da pílula feminina de hoje é justamente… queda de libido! A realidade é que a responsabilidade do controle de natalidade sempre foi atribuída à mulher, e a mulher pode ser submetida a efeitos colaterais inaceitáveis. Outros efeitos da pílula são dores nos seios, de cabeça, náuseas, nervosismo, depressão. Desde 1940 existem estudos para a produção de uma pílula anticoncepcional masculina. O movimento feminista não é radical quando diz que se os homens engravidassem, o aborto seria legal e seguro, é lúcido.
Notas de rodapé:
1: Movimento Eugenista: "A eugenia positiva tinha como objetivos centrais propiciar a seleção eugênica na orientação aos casamentos e estimular a procriação dos casais considerados eugenicamente aptos para tal. A seleção matrimonial destinar-se-ia à seleção de boas linhagens hereditárias a fim de, preferencialmente, alcançar o ‘tipo eugênico’, tido como uma “synthese feliz de qualidades superiores de temperamento e de inteligencia”(7). Considerava-se que esses indivíduos eugênicos concentravam-se principalmente nas altas camadas dirigentes e classes superiores de qualquer sociedade, cuja pequena minoria de algumas centenas ou de alguns milhares de indivíduos poderiam dizer mais da capacidade de um povo do que os vários milhões das suas classes populares. Por isso estimulava-se a procriação desses elementos com grande ênfase às ações desenvolvidas no campo pré- concepcional, como a realização de exames pré- nupciais e estudos genéticos dos nubentes. (...) A eugenia negativa visava o segundo aspecto do ideal eugênico, ou seja, diminuir o número dos seres não-eugênicos ou disgênicos e incluía basicamente a limitação ao casamento e procriação daqueles assim considerados. Propunha-se maior controle governamental sobre os casamentos e sobre a reprodução, através da exigência de exames pré- nupciais e de estudos genéticos, sendo a procriação desaconselhada, por exemplo, em caso de avançada idade materna ou de consangüinidade do casal. Defendia-se o aborto eugênico, o controle das fontes de degeneração como o alcoolismo e as doenças venéreas e algumas limitações nas políticas imigratórias do país; discutia-se sobre segregação e esterilização de doentes mentais e outros degenerados." Mai LD, Angerami ELS. Eugenia Negativa e Positiva: significados e contradições. Rev Latino-am Enfermagem 2006 março-abril; 14(2):251-8, (pg. 254)
2: "Birth control itself, often denounced as a violation of natural law, is nothing more or less than the facilitation of the process of weeding out the unfit, of preventing the birth of defectives or of those who will become defective.” – SANGER, Margaret. Women and the New Race Chapter 18
3: "(...)the ever-increasing problem of feeble-mindedness, that fertile parent of degeneracy, crime, and pauperism. Small as the percentage of the imbecile and half-witted may seem in comparison with the normal members of the community, it should always be remembered that feeble-mindedness is not an unrelated expression of modern civilization. Its roots strike deep into the social fabric. Modern studies indicate that insanity, epilepsy, criminality, prostitution, pauperism, and mental defect, are all organically bound up together and that the least intelligent and the thoroughly degenerate classes in every community are the most prolific” SANGER, Margaret. The Pivot of Civilization. CHAPTER IV: The Fertility of the Feeble-Minded.
Fontes (desculpem a ausência de padrão de citação):
SANGER, Margaret. The Pivot of Civilization.
PERRY, Mike. THE HISTORY OF PLANNED PARENTHOOD
TAVARES, Luciane Santiago. Necessidade insatisfeita por métodos anticoncepcionais no Brasil. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro 2006
Chemistry World, 2010 Dezembro. The Contraceptive Pill - The birth of the pill
BERQUÓ, Elza. Brasil, um caso exemplar - anticoncepção e parto cirúrgicos - à espera de uma ação exemplar
VIEIRA, Elisabeth Meloni, Características do uso de métodos anticoncepcionais no Estado de São Paulo Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 263-270, Junho 2002 [observação da Tabela1]
BlackGenocide.org (site), http://www.blackgenocide.org/sanger05.html
TooManyAborted.com (site),The Mother of Planned Parenthood
Sobre Katharine McCormick: MIT Institute Archives & Special Collections
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