É bastante sintomático que mal nos lembremos do aniversário do Beato Padre Victor, venerável e hoje digno de um espaço na matriz da cidade onde viveu e morreu: a morte encerra ciclos e inicia narrativas, apropriações, versões e histórias. A morte é ponto final no devir do sujeito, mas inicia o seu devir exclusivamente pela palavra do outro. Em Três Pontas, sul de Minas Gerais, ainda é mais fácil ser negro e “mexer com coisa de preto” no discurso definido e fechado, nos lugares e locais adequados, do que na livre expressão do seu devir.
E é engraçado, porque a cidade costuma se orgulhar do seu marketing negro: o café, Padre Victor e Milton Nascimento. Este último, é bom que não se esqueça, sofreu bastante por ser negro em Três Pontas... foi necessária a intervenção da mãe para que aceitasse a homenagem que lhe foi prestada em 1977 e durante muito tempo sua passagem por aqui foi familiar e protocolar.
Daqui exatamente um mês, no dia 13 de maio, data hoje em dia de comemoração polêmica e questionável, mas ainda indubitavelmente icônica da história da diáspora negra no Brasil, acontecerá o “Lançamento do Movimento pela Criação do Conselho Municipal da Promoção e Igualdade Racial de Três Pontas”, com palestra Magna. Tiago Henrique Silva, um dos principais articuladores do movimento, é negro e coloca a demanda para a sociedade, de forma a sistematizar junto ao poder público formas de lutar pela igualdade racial na cidade. O movimento é de tamanha importância no campo institucional, deve ser apoiado. O debate sobre igualdade racial deve ser feito e levado à sério em letras garrafais, nas instâncias de poder da cidade, mas também e, sobretudo, nos seus recantos, esquinas e becos. São as conversas miúdas que me deixam de cabelo em pé. A maior parte dos negros da cidade vivem em bairros periféricos, que recebem epítetos nada sutis e carinhosos por parte da população da cidade.
Não é à toa que ao me reportar à Padre Victor tenho chamado-o de Preto Velho – que foi como eu cresci vendo, um preto e velho. Não é preciso muito conhecimento de causa para saber que o PretoVelho entidade espiritual é uma figura anciã ligada aos ancestrais africanos, de muita sabedoria, paciência, virtuosos em acalmar o coração de seus filhos. Já que se faz e refaz a memória nas costuras do agora, faço questão de conectar seu nome ao imaginário das influências de matriz africana do país, marginalizadas. Afinal de contas, o rosto de Padre Victor circula pelos cantos todos da legalidade da sociedade trespontana, desde os prédios institucionais, passando pelas boutiques de madame até os casebres mais simples da periferia... Essa 'unanimidade' se dá, é claro, por suas obras – de grandes importância para a cidade, seus milagres em vida, a quantidade imensa de milagres pós morte – mas também por sua ligação ao poder da Igreja Católica, num lugar onde a formação, a vida social das pessoas, ainda é bastante calcada por ela – sendo ou não devoto ou praticante. Sim, são dessas cascas que se misturam com a pele, desde os séculos passados.
Somos católicos de formação, primeira comunhão e crisma que não praticamos, mas estamos em dia com as obrigações para o cumprimento do casamento diante do padre e da missa de sétimo dia na matriz.
De resto, frequentamos centro espíritas – embora, minha mãe mesmo, coitada, teve que jurar de pé junto para a minha avó que nunca mais pisaria num lugar daquele...
Pode parecer muita acidez ou exagero, mas me atormentou a alma ouvir a confissão de boca miúda de uma mulher, maior de idade, dona do nariz e das contas, toda temerosa de que frequenta a Umbanda na cidade: “tenho medo das pessoas saberem, descobrirem” “não é bem visto né?” “as pessoas acham que é macumba, que é coisa ruim” “falo pra você porque você sabe que não é né?”.
Se Três Pontas quer mesmo se orgulhar dos pretos que tem, é bom que se orgulhe de todos eles, de tudo deles. Na verdade, não é nem questão de orgulho. Orgulho tem a ver com ego. Mas algo de respeito mesmo e em grande medida, reconhecimento.
Sonho com uma cidade sim, com um Conselho institucionalizado para debater direitos e promoção de igualdade, mas não só. Que isso possa ser uma ferramenta, mas não a única, de discussão da desigualdade simbólica e efetiva dos espaços negros, da cultura negra. Para que eu, que escrevo do alto da minha ignorância tremenda sobre o patrimônio cultural negro da cidade, possa ter acesso a isso com tanta facilidade quanto cruzo com a herma do Padre Victor na praça da Cidade.
E devo dizer: que bom que ainda cruzamos com aquela imagem, em que ele é, de fato, retratado como preto-velho, com seus traços largos, arredondados, os lábios grosso de preto. Preto mesmo, como a gente fala por aqui, preto retinto, quase azul. Porque, para ganhar seu lugar nos altares, na imagem nova pós processo de beatificação se desenha um padre mais jovem e de traços finos, trajado de branco...
Feliz aniversário, Padre Victor, preto véio. Que a gente não tenha medo de recontar e contar nossas histórias e renascer.
Deixe um comentário